
Com um pouco de tempo sobrando, sem muito o que fazer, decidi, mesmo sabendo das rusgas do filósofo, colocar Nietzsche e Deus para um diálogo. Sabia que os dois partiriam para uma treta daquelas, mas insisti.
Criei um cenário num crepúsculo eterno, em que as sombras da mente se entrelaçam com as luzes divinas. O filósofo Friedrich Nietzsche, com seu bigode desgrenhado e olhos faiscantes de fúria contida, surge diante de uma presença etérea. Coloquei ele, o eterno ranzinza, o martelo que golpeia ídolos, agora cambaleia em angústia, confrontando o que em “A Gaia” declarou morto. Deus, sereno e invisível como o vento, responde com uma voz que ecoa não nos ouvidos, mas na alma.
Nietzsche: Ó Deus, se é que você ainda existe além das minhas ilusões! Por que me abandonaste? Eu, que cresci sob o teto de um pastor luterano, que devorei as Escrituras na juventude, por que permitiste que eu me afastasse tanto? Eu gritei ao mundo que Tu estavas morto, que Te matei com minhas palavras afiadas como lâminas. Mas agora, nesta loucura que me consome, vejo que fui eu quem morri por dentro.
Meus conflitos me devoram: a saúde frágil que me tortura com dores incessantes, a solidão que me cerca como um abismo, e, acima de tudo, aquela decepção lacerante pelo amor não retribuído a Lou Salomé. Ela, com sua mente brilhante e fria, rejeitou meu coração, deixando-me como um tolo exposto ao ridículo. Por que, ó Criador ausente, permitiste que eu me perdesse em tal niilismo? Por que não me detiveste antes que eu proclamasse Tua morte, antes que eu me tornasse o profeta do vazio?
Sua voz treme, carregada de rancor e desespero, ecoando o histórico de um homem que lutou contra deuses e demônios internos, sempre com uma rabugice que mascarava sua vulnerabilidade profunda.
Deus: Meu fratricida, meu filho errante, eu nunca te abandonei. Tu é que viraste as costas, mergulhando no abismo de tua própria vontade soberba.Lembra-te do profeta Elias, que fugiu para o deserto, sentindo-se traído e sozinho após desafiar os falsos deuses. Ele clamou: “Já basta, Senhor! Toma a minha vida, pois não sou melhor que meus pais.” Achava que Eu o havia deixado à mercê da rainha Jezabel, mas Eu o envolvi em um sussurro suave, não no terremoto ou no fogo, e o enviei de volta à missão. Ele superou, retomando a confiança em Mim, porque permitiu que o silêncio revelasse Minha presença.
E o apóstolo Paulo? Ah, Paulo, outrora Saulo, o perseguidor furioso. Em Damasco, cegado e humilhado, ele se sentiu abandonado em sua conversão abrupta. Mais tarde, em suas epístolas, confessou espinhos na carne, angústias que o faziam questionar: “Ó infeliz homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” Ele se via traído por fraquezas que pareciam divinas punições, mas superou ao entregar-se: “Quando sou fraco, então sou forte.” Ele retomou a fé, permitindo que Minha graça se manifestasse em sua vulnerabilidade.
Tu, Nietzsche, viveste conflitos semelhantes – a decepção com Salomé não foi mera rejeição romântica, mas o ápice de tua luta contra o amor não correspondido do mundo, contra a ilusão de controle. Teu rancor, tua rabugice eram escudos contra o medo do vazio. Mas eu estive sempre aqui, não em templos de pedra ou dogmas rígidos, mas na tua capacidade de despertar de ti mesmo.
Desperte, Nietzsche! Desperte de teu ego, de tua “vontade de poder” que te isolou, e permita que Eu me manifeste. Apesar de teus questionamentos sobre minha suposta ausência,
Eu continuo onde sempre estive: no silêncio interior, na humildade que dissolve o “eu” e revela o divino. Tu não Me mataste; apenas te cegaste para Mim. Volta, e encontrarás paz além do abismo. Esqueça-te do “Super-Homem” que, na infantilidade, briga no eterno combate “além bem e do mal”. Eu não morri!

