
A recente decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou que pedidos de impeachment contra ministros da Corte só podem ser apresentados pelo Procurador-Geral da República (PGR), gerou uma onda de críticas no Congresso Nacional. Deputados e senadores, principalmente da base aliada do governo, classificaram a medida como um “ato de autocontenência” e um “escudo” para proteger a Corte de investigações. No entanto, especialistas em Direito Constitucional e a própria jurisprudência do STF argumentam que a medida não cria um privilégio, mas reafirma um procedimento legal claro e protege a independência do Judiciário de iniciativas meramente retóricas ou de assédio processual.
A controvérsia gira em torno da interpretação do Artigo 52, I, da Constituição Federal, que atribui privativamente ao Senado Federal o processo e julgamento de ministros do STF e do Procurador-Geral da República nos crimes de responsabilidade. A decisão de Gilmar Mendes, tomada em sede de um Mandado de Injunção, apenas regulamentou o rito de entrada desses processos: eles devem ser apresentados pelo PGR, órgão constitucionalmente responsável pela defesa da ordem jurídica, e não por qualquer parlamentar. “A Constituição não estabelece quem pode apresentar a denúncia. Coube ao Supremo, via Mandado de Injunção, suprir essa lacuna, estabelecendo um filtro que impede a banalização do impeachment como instrumento de pressão política”, explica o constitucionalista Pedro Serrano, professor da PUC-SP.
Juristas lembram que a prerrogativa de foro por função e um rito rigoroso para responsabilização de altas autoridades são pilares do Estado Democrático de Direito, garantindo que elas não sejam perturbadas por perseguições políticas infundadas. “As garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio, previstas no Artigo 95, existem justamente para blindar o juiz de pressões externas. Um processo de impeachment não pode ser iniciado por qualquer cidadão; isso desequilibraria por completo o sistema de freios e contrapesos”, afirma a jurista Deborah Macedo, ex-conselheira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O próprio ministro Alexandre de Moraes, em entrevista ao Estado de S. Paulo, já destacou: “Críticas são normais e saudáveis. Agora, tentativas de intimidação ou de deslegitimação da Corte, via instrumentos processuais sem lastro, são um ataque à Constituição”.
O debate ocorre em um momento de tensão institucional histórica entre o STF e o Congresso, onde parte dos parlamentares busca formas de limitar o poder da Corte. Vários Projetos de Lei (PLs) e Propostas de Emenda à Constituição (PECs) tramitam no Legislativo com o objetivo de restringir decisões monocráticas de ministros, exigindo, por exemplo, seu referendo pelo Plenário em curtos prazos. A decisão sobre impeachment, porém, toca em outro nervo: o desejo de setores do Congresso de ter um instrumento mais direto de controle sobre os ministros. Para o senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), que criticou a decisão, “o Congresso não pode ter as mãos atadas para fiscalizar os outros Poderes”.
Contudo, do ponto de vista constitucional, a competência para processar e julgar é do Senado, não da Câmara dos Deputados. O rito estabelecido por Gilmar apenas define que a iniciativa formal deve partir do PGR, um agente político com legitimidade constitucional. “Não se trata de impedir a investigação ou a responsabilização, mas de dar seriedade ao processo, evitando que seja usado como palanque político. O PGR tem independência funcional para analisar o mérito de qualquer denúncia”, pondera o advogado constitucionalista Juliano Breda. A tensão, portanto, revela menos uma “histeria” infundada e mais um choque entre visões sobre como o sistema de freios e contrapesos deve operar na prática, com o Legislativo buscando ampliar sua influência sobre um Judiciário que, nos últimos anos, tem tomado decisões de grande impacto político – muitas vezes, justamente por meio de decisões monocráticas, instrumento legal previsto para casos de urgência.
A polêmica tende a seguir no centro do debate público, especialmente em um ano eleitoral. Enquanto parlamentares prometem reagir com projetos para alterar a regra, a decisão de Gilmar Mendes permanece em vigor, reafirmando a autonomia do STF em interpretar e detalhar os procedimentos que garantem sua própria independência, um dos fundamentos da ordem constitucional de 1988. A discussão final não é sobre a existência do controle, mas sobre quem tem a chave para acioná-lo, um dilema que continuará a testar os limites entre os Poderes.


